Feliz daquele que encontra um amigo digno desse nome, disse o filósofo grego Menandro e isso há 2.300 anos. E eu, me permita confessar este sentimento, me considero um homem privilegiado pela riqueza de amigos que cultivo nesta existência humana finita e passageira. Bem, num alegre círculo de alguns desses queridos, bons e velhos amigos, na pequenina e tradicional adega de nossa outrora campesina comunidade, onde de hábito costumamos nos encontrar nos finais de semana, degustávamos o delicado sabor de um vinho e trocávamos reflexões descompromissadas sobre o nosso mundo, obviamente sob a nossa visão de homens amadurecidos.
O mundo atual, consensávamos, a que os filósofos e sociólogos denominam de Pós-Modernidade é, conclusivamente, vazio de valores, é múltiplo e sem raiz de visões de mundo, é particularmente individualista e mais, o deus consumo está à frente de tudo.
Um dos amigos – Camus - disse: O texto O Mal-Estar da Civilização de Freud e a obra A Modernidade Líquida de Bauman pretenderam expressar isso que estamos discutindo, e acho que tiveram bastante sucesso.
Sim - intercedeu o bom Antonay, após saborear um naco de queijo italiano - lembremos que por volta do séc. XV a salvação estava na fé em Deus e os homens sacrificavam suas vidas e entravam em guerra por esta visão de mundo. Porém, a teórica razão de Descartes e depois Kant rompe com esta visão de mundo teológica da Idade Média e produz enormes efeitos na filosofia, nas ciências, na política e na cultura. Surge aí a transição para a Modernidade, onde as esperanças passaram a ser depositadas não mais na fé em Deus, mas na força da autonomia da razão, confiante que ela seria a salvação da raça, traria a felicidade de todos e conseguiria a definitiva paz entre os homens. Deus estava morto, como disse Nietzsche.
Brawg fica pensativo por algum tempo e completa: Mas esta nova esperança de redenção do mundo através da capacidade racional humana também se estraçalha com as carnificinas das duas grandes guerras mundiais e a bomba atômica. Olha aí do que é capaz a “salvadora” razão humana: guerras por todos os lados, concentração absurda de riqueza, milhões de pessoas morrendo de fome, pestes... Que belo mundo ela nos proporcionou, não?
-E no começo do século passado esta esperança foi novamente depositada em outra expectativa meta-ideológica, ou seja, as soluções políticas e sociais-econômicas como o neoliberalismo, o socialismo, o fascismo, o fabianismo e outros ismos. E nós já sabemos o resultado, não é? – interrogou-nos Antonay.
Então estamos num mato sem cachorro – sintetizou o confrade Camus - sem fidúcia na fé, sem confiança na razão humana, sem mais acreditar nas soluções sociais e ocos da silva de valores resolvidos, não exatamente foi isso que Bauman quis dizer?
Sim, respondi, ele e outros pensadores fazem essa análise nada animadora de nosso tempo, a Pós-Modernidade, como dizem eles. Afirmam que todas as visões de mundo até aqui válidas – fé, razão ou revoluções sociológicas – estão mortas e não mais impulsionam o espírito do homem de nossa atualidade.
Que jovem hoje morre por religião? Que jovem hoje se mataria por defender a soberania da razão? Que jovem hoje se sacrificaria por alguma ideologia política? Daí talvez a fuga para o consumo doentio de nossa era. Substituímos os templos religiosos pelos shopping centers. Estamos sim num deserto de importâncias, tudo é volátil, efêmero, passageiro, tudo tem sua obsolescência programada. O que ontem servia, hoje já não presta mais. Relações humanas, amigos, família, afinidades políticas foram relativizadas, não são mais realidades concretas, não têm mais consistência, são líquidas, se desmancham no ar. Tudo é artefato tecnológico, precificado, globalizado, virtual, ficcional, mercadológico, sem tradição, sem raiz.
E fazendo uma expressão de alguém que tinha se lembrado de alguma coisa não muito agradável, o bom camarada Brawg comentou: E pensar que os astutos que hoje povoam o corrompido cenário político de nosso país, concordemos ou não com suas formas de pensar, são os últimos que ainda acreditavam em algum tipo de solução – fosse o neoliberalismo, o marxismo, o socialismo democrático, ou o trabalhismo – e cujos prazos de validade parecem já estarem vencidos.
Um silêncio tomou a reunião. Ficamos calados por algum tempo, sorvendo um gole de vinho e com o olhar no infinito.
O sempre carinhoso amigo Cassiane, que havia permanecido calado e só nos observando até aquele momento, levantou a mão como que pedindo a palavra e inqueriu: Por favor, só um momento meus amigos: se com políticos atuais que dizem que ainda acreditam em alguma coisa já estamos nesta catástrofe ética, nesta miséria social e econômica, eu pergunto: com esse vazio total de valores de hoje, que espécie de políticos estamos chocando para o futuro?
- Cassiane, você experimentou este queijo? E o futebol, como vai? – Interroguei.
Ah! – deixa eu te falar do último jogo... e nos esquivamos para assuntos triviais e agradáveis.
Fernando César Gregorio
Novembro/2013